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Manoel Carlos

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Sonhos

Leia na crônica de Manoel Carlos

Por Manoel Carlos
Atualizado em 4 nov 2017, 16h14 - Publicado em 4 nov 2017, 16h14
 (Léo Martins/Veja Rio)
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Nunca tinha visto aquele sujeito na vida, juro, mas, como ele estava no Café Severino, eu considerei que fosse, no mínimo, um conhecido meu ou dos meus amigos. Sentei numa mesa próxima e logo percebi que ele queria conversar.

— Sempre achei que sonhar é um milagre que se realiza todas as noites, quando dormimos — começou. — Às vezes dizemos de manhã: “Que belo sonho eu tive!”. E, nessa mesma noite, ao nos deitarmos, procuramos reencontrar o fio perdido da noite anterior. Sonhar em série, em capítulos, manter o enredo e os personagens, mas mudar, quem sabe?, os cenários da história principal.

— Imagine então se fosse em Veneza…

— Pois é. Nunca estamos satisfeitos. Nem mesmo com os mais belos sonhos. Queremos mais, queremos sempre mais. A noite é uma dama de negro cheia de vontades. Quer sempre mais. Caprichosa como toda mulher. Quando me ponho a maldizer a lua e as estrelas, eis que o sol nasce e tudo se modifica. E o que era assustador se transforma num céu de maio. Então acordo leve como uma pluma, pulo da cama e vou pelas ruas distribuindo notas de 50 reais aos pedintes e até sorrio para os insuportáveis lavadores de para-brisa.

Preparei-me, então, para ouvir do desconhecido qualquer coisa. E, mesmo começando a me preocupar, continuei encarando-o.

— Pelo que diz, suas noites são infernais — comentei com leveza…

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— Mas não é só isso — disse ele. — Fico muito agitado com alguns sonhos e tenho manias e superstições. E escondo de mim mesmo alguns temores noturnos para não atrair morcegos, como os corvos de Edgar Allan Poe.

— Consultou um médico?

— Dezenas!

E emendou sem respirar:

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— Tem mais: quando sonho que algum amigo morreu, aí é de enlouquecer. Se é de madrugada, fico esperando o dia nascer para ligar, saber como é que ele está, se aconteceu alguma coisa, entende?

O homem suspirou profundamente e fechou os olhos, exausto. Esperou dois minutos e reanimou-se:

— Enquanto não falo com o meu amigo, não sossego. Fico pensando se o pesadelo que me acordou no meio da noite não foi um sinal de que ele corre perigo, que naquele mesmo momento está sufocando na cama, nos estertores da morte. E ninguém se dá conta, ninguém percebe o que está acontecendo.

E, com voz profunda e olhos cintilantes:

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— E por duas vezes perdi amigos depois de sonhar com eles.

Não encontrei nenhum espelho para checar, mas tenho certeza de que a essa altura eu estava pálido e com olheiras, de tanta aflição.

E o homem, com um suspiro puxado do fundo da alma:

— Sofro muito, amigo!

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Aí, olhou firmemente para mim e falou num tom de sentença:

— Hoje vou sonhar com o senhor!

Entrei em pânico e tive uma saída no mínimo cômica:

— Não, por favor, não faça isso. Eu agradeço a gentileza, mas…

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— Está decidido. Eu vou sonhar com o senhor! Me deixe seu endereço e telefone que eu me comunico, almoçamos juntos e eu lhe conto o sonho. Com licença.

E desapareceu em direção ao banheiro. Paguei a conta e saí correndo, trombando com o vendedor da livraria que cruzava carregando uma pilha de livros. Saí, sumi, desapareci e até agora não tive coragem de voltar.

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