Opinião, por Rafael Dragaud: A média das cinco pessoas
É raro, hoje em dia, alguém mandar flores. As pessoas atualmente mandam vídeos — é o jeito moderno de dizer “lembrei de você”
É raro, hoje em dia, alguém mandar flores. As pessoas atualmente mandam vídeos — é o jeito moderno de dizer “lembrei de você”. E como vivemos trocando lembranças digitais, semana passada recebi no celular mais um vídeo que um amigo achou que eu precisava ver. E, como manda a boa etiqueta dos afetos modernos, eu assisti.
Era um rapaz listando frases motivacionais que a internet adora, mas que ele, com profunda impaciência, dizia odiar. Era um inventário pessoal das máximas que mais o irritavam: “Pense fora da caixa.”, “Você atrai o que vibra.”, “Todo mundo tem as mesmas 24 horas.” E outras tantas do mesmo gênero, que fazem a vida parecer um manual de autoajuda portátil.
Ri. Não das frases, mas dessa mania moderna de procurar profundidade em pílulas. E, como bom cidadão do século XXI, fiz o que devia: encaminhei o vídeo pra outro amigo, que logo assistiu e respondeu com a maior convicção:
— Olha, de tudo o que ele falou, tem uma que pra mim não é piada, é um mantra.
— Qual?
— “Todo mundo tem as mesmas 24 horas.”
Respirei fundo. Não queria desmontar a crença dele, tampouco abrir um debate sobre a desigualdade social brasileira às dez da noite de uma terça-feira. Então apenas devolvi, num tom meio brincalhão:
– Claro que você acredita nisso. Afinal, você é a média das cinco pessoas com quem mais convive.
Disse por reflexo. A frase — que era do próprio vídeo — soou perfeita para a ocasião: uma ironia leve, mas crítica, dirigida a alguém que, para o meu gosto, convive demasiadamente com empresários devotos da meritocracia, mesmo sendo, em sua maioria, herdeiros de grandes fortunas — ou seja, frutos do mérito da própria sorte.
Meu amigo riu e seguiu seu dia corrido, provavelmente enviando outros vídeos para outras pessoas. E minha singela provocação ficou no ar, viva — procurando sua próxima vítima. O que eu não suspeitava é que ela voltaria para mim, como um bumerangue filosófico e vingativo, ressoando nos meus pensamentos: você é a média das cinco pessoas com quem convive. E, pra minha surpresa, percebi que já começava a concordar com aquilo que eu tinha usado contra o meu amigo.
Comecei a pensar nas minhas próprias cinco pessoas. Meu filho, minha mulher, meus amigos, meus parceiros de trabalho. Não sei se sou a média deles, mas percebo traços de cada um em mim: a timidez charmosa do meu filho, a sabedoria serena e sutil da minha mulher, a teimosia dos amigos, a pressa dos colegas.
E talvez haja ainda uma presença mais silenciosa nesse convívio: minha mãe. Ela já não está mais viva, mas me visita todos os dias, e às vezes converso mais com ela agora do que quando podia vê-la. Dela herdei uma certa impaciência com as coisas do dia a dia, um temperamento que chega antes do pensamento. Mas também um jeito de amar intenso, apressado para viver. É curioso perceber como certas presenças, mesmo ausentes, continuam nos compondo. São entidades, que, mesmo sem corpo, têm uma voz com a qual dialogamos.
E foi talvez por isso que, nos últimos meses, uma dessas vozes passou a me acompanhar com frequência: a de Gilberto Gil. Eu convivo com Gil corpóreo nos ensaios da turnê atual, em alguma situação social ou outra, mas quem de fato dialoga comigo é a sua voz eterna, seu pensamento em canto e verso. Por dirigir artisticamente o show Tempo Rei, tenho escutado – no sentido mais profundo do verbo, que flerta com “absorver” e “aprender” — suas músicas, e isso tem transformado Gil na quinta pessoa da minha média.
E de que ele me contamina? De filosofia poética – como um Shakespeare da Bahia – e, provavelmente, de outros sentimentos que só vou entender com o tempo. É dessa dimensão que quero falar: da capacidade rara de lidar com o tempo, sob a perspectiva do amor fati de Nietzsche — esse amor pelo destino que aceita o que vem não como castigo, mas como matéria da canção sagrada da vida.
Gil viveu a perda de uma filha este ano. Eu, a perda de uma ex-mulher que amava profundamente. Vivo essa dor íntima todos os dias, mas aprendo também quando o vejo cantando Drão mais uma vez diante de milhares de pessoas. Às vezes, tento imaginar como seria falar com Deus, lembrando da Preta, e invento novos e insuspeitos sentidos para o verso “os meninos são todos sãos”.
Quando subo ao palco para um ensaio, minha alma às vezes também cheira a talco, como bumbum de bebê. Me vejo pensando no abacateiro, na guariroba, na marmelada de banana, e então me balanço numa gangorra de melancolias e boas lembranças, até me descobrir sorrindo. E é nessas horas que percebo que Gil está mesmo entre minhas cinco pessoas, ainda que seja uma entidade composta por música, sabedoria e uma fé curiosamente prática – que não promete milagres, mas ensina respirar fundo e apenas seguir o passo: andar.
E quer saber? Tem sido uma bela influência. Meu celular avisa que cheguei ao limite diário de tempo de uso — e talvez eu também tenha chegado ao fim dessa crônica.
Eu não vendo cursos online com vagas limitadas, mas vou me arriscar a deixar uma dica: se você ainda puder escolher uma das cinco pessoas da média da sua vida, que ao menos uma delas saiba cantar belas canções que te ajude a viver.
Rafael Dragaud é roteirista, diretor do show da turnê “Tempo Rei”, de Gilberto Gil, trabalhou na Globo por mais ou menos 30 anos como diretor-executivo do núcleo de variedades da emissora, responsável por programas, como “Conversa com Bial”, “Mais Você”, “Encontro”, “É de Casa” e “Altas Horas”.





