Rafael Dragaud: “Só a palavra nos salva da barbárie”
Roteirista faz um paralelo entre "Macacos", de Clayton Nascimento, e "O Céu da Língua", de Gregório Duvivier
De um lado, um corpo negro, descalço e sem camisa, grita contra séculos de silenciamento; do outro, um corpo branco, envolto numa emblemática gola rufo, encarna o português do século XVI e exalta a língua chegada das caravelas. De um lado, Clayton Nascimento; do outro, Gregório Duvivier — dois brasileiros, exímios atores, dois operários da palavra, solitários diante de suas plateias. Dois radicais, porque vão à raiz: Clayton, da violência histórica, e Gregório, da língua que herdamos. Dois autores de dois monólogos de sucesso nos palcos do país, que, dentro da minha cabeça, decidiram conversar — à minha revelia. Um diálogo que atravessou mais de cinco séculos, cruzou o Atlântico e pôs, diante de mim, colonizador e colonizado, privilégio e periferia, língua e chibata.
Esse diálogo, aviso logo, não está em cena: está em mim. É invenção minha — Clayton e Gregório jamais o propuseram. Desde que saí do Teatro Casa Grande, na semana passada, essa ideia me habita como um rumor inevitável. Escrevê-la aqui talvez seja a única maneira de dar vazão a ela. Clayton e Gregório edificaram universos aparentemente irreconciliáveis, que, ao se chocarem, abrem uma fenda histórica, onde a educação e a arte se revelam duas faces de um mesmo gesto de resistência.
“Macacos”, de Clayton Nascimento, é um texto absolutamente comprometido com a educação. Não apenas a educação formal, mas a que forma consciência, a que desperta, a que resgata memórias soterradas e expõe feridas históricas. Clayton escreve e atua como quem ensina — e, ao ensinar, transforma. Já “O Céu da Língua”, de Gregório Duvivier, é um texto absolutamente comprometido com a cultura. É uma defesa apaixonada da língua portuguesa, de suas nuances, de sua poesia escondida no cotidiano. Gregório nos lembra que a língua não só é ferramenta de comunicação, mas também de encantamento.
Entre cultura e educação, não me interessa a fronteira — interessa-me a conversa que se estabelece. Clayton também defende a língua ao reescrever palavras tantas vezes usadas como arma. Gregório também educa ao nos ensinar a enxergar a beleza de palavras em que pisamos distraidamente. No meu imaginário, essas duas forças se misturaram de tal modo que já não era possível nomeá-las em separado. Pediam um título único, um híbrido improvável: “A Língua dos Macacos do Céu”.
Essa língua, imaginei, seria o espelhamento de dois idiomas que habitam o mesmo território: o português oficial, que, em Gregório, se ergue desde Camões e sua tradição literária, e o “pretuguês”, como definiu Lélia Gonzalez, que pulsa na fala e na memória negra que Clayton traz na pele. Um não existe sem o outro. Ambos contam a história de um país feito de violência e invenção, imposição e resistência.
E, afinal, quem sou eu? Por que me arvorei em ser autor não convidado de um diálogo de monólogos alheios? Ao me colocar entre Clayton e Gregório, tornei-me também personagem-espectador implicado, corpo convocado pelo que vi e ouvi. No fundo, não me vejo nem no grito de Clayton, nem na brincadeira de Gregório. Minha alma habita um não lugar, território fundado pelo constrangimento de quem reside numa classe social com a qual não se identifica. E se estou aqui escrevendo, e não no divã da analista, é apenas porque ainda aposto no que a palavra pode.
Se invento esse diálogo, é porque acredito na eficácia da palavra diante da realidade. Acredito que essa troca — entre o grito de Clayton e o riso de Gregório — é também a minha. Acredito em Clayton e em Gregório. Acredito que podemos, pela palavra, não apenas denunciar e encantar, mas também impedir a barbárie e construir um país — um país que não tema ver-se no espelho da sua história, que enfrente suas feridas abertas e, ainda assim, insista em recomeçar. Acredito que o papel da arte é disputar o Brasil que seremos com as armas frágeis — e poderosas — da linguagem.
No fim, “Macacos” e “O Céu da Língua” não se excluem: olham-se. E, nesse olhar tenso e necessário — entre lágrimas e risadas, entre a ferida e a festa —, um país se reconhece através da palavra. Sempre ela, capaz de ferir, de curar e de lembrar que o Brasil ainda está sendo escrito — por todos nós.
Rafael Dragaud é roteirista, diretor do show da turnê “Tempo Rei”, de Gilberto Gil, trabalhou na Globo por mais ou menos 30 anos como diretor-executivo do núcleo de variedades da emissora, responsável por programas, como “Conversa com Bial”, “Mais Você”, “Encontro”, “É de Casa” e “Altas Horas”.





