Com as pernas do skate, nunca é longe demais para Felipe Nunes
No Rio para a disputa do STU, atleta conta como atraiu a admiração e o apoio do icônico Tony Hawks e agregou suas manobras ao novo clipe do Metallica
Quão longe estamos de superar nossos demônios? Cantada em desabafo por James Hetfield, a pergunta central de “Too far gone?” reforça a pegada existencialista de “72 estações”, novo álbum do Metallica. A resposta reverbera como um grito de fé nas acrobacias do skatista Felipe Nunes agregadas ao clipe da música. Nunca é longe demais para tamanha perseverança
Desde a adolescência o curitibano transforma o skate em pernas. Tinha 6 anos quando um acidente de trem as levou. Vê-lo levantar a cada tombo é tão inspirador quanto as manobras que lhe renderam pódios como o do X-Games.
Ímpeto no sangue, brilho nos olhos, Felipe salta sobre os obstáculos da inclusão com a destreza de quem vence sucessivos desafios na categoria street, sua especialidade, e na park. Aos 24 anos, frequenta a elite das competições adaptadas e não adaptadas.
Virtuosismo desses logo atrairia fãs, marcas nacionais e estrangeiras, reconhecimento internacional. Ganharia dos deuses nada menos do que a admiração do icônico Tony Hawk, o Pelé do skate.
O americano viraria padrinho profissional do brasileiro. Ficaram de se encontrar no próximo domingo, depois que Felipe encarar a etapa carioca do STU Open. A vitória no ano passado embala a confiança.
Ele conta, num papo por vídeo, como equilibra a intensa rotina de treinos, disputas, viagens, gravações. Enquanto doura o sonho olímpico, ainda encontra tempo para o rock, o videogame, a família. Alma de acrobata.
Como o skate mudou a sua vida?
Aos 12 anos, troquei a cadeira de rodas pelo skate dado por uma vizinha. Virou as minhas pernas. Passei a ir de skate a todos os lugares. Eu o uso 24 horas por dia. Essa transformação extrapola o esporte.
Era questão de tempo competir?
Não era a minha intenção. Mas, quando aprendi a primeira manobra, brincando no Pinheirinho, bairro de Curitiba, percebi que podia ir longe. Acordava cedo e ficava até tarde treinando. Fui conhecendo as técnicas e a cultura do skate.
Fora as dificuldades de competidor iniciante, que obstáculos você encarou num país ainda precário ao esporte adaptado?
Nunca fiz da deficiência um limitador. Sempre procurei competir de igual para igual, até porque não existia paraskate. No início, claro, é mais difícil. Na minha primeira competição, em 2013, eu só sabia três manobras. Competi na base da emoção. A minha família me apoiou, e me apoia, decisivamente.
Que inspirações você cultiva do universo familiar?
Quando meu pai faleceu, fiquei desanimado a ponto de quase desistir da minha estreia em competições. Minha mãe e meus irmãos me reanimaram, e eu acabei virando profissional. Eles são a grande inspiração. Leandro, o irmão mais novo, até esboçou seguir meus passos, mas a vida tomou outros rumos.
Com a rotina de treinos e competições, você segue madrugador?
Sim, hoje minha agenda é extensa. Fora treinos e competições, inclui muitas gravações e viagens. Acordo cedo, tomo café e organizo meu dia para treinar à tarde, na academia e nas pistas. Procuro andar em várias pistas, para evitar zonas de conforto e me aperfeiçoar constantemente.
Esse empenho se reflete em sucessivos pódios, inclusive no X-Games. Qual a sua principal virtude esportiva?
Intensidade.
E os principais perrengues?
As lesões frequentes. Elas viram um costume. O skatista se habitua a cair e levantar, seguir adiante. Isso nos inspira. Em 2019, por exemplo, quebrei a mão numa terça, descendo um corrimão, e no sábado já estava numa competição em Minneapolis, nos Estados Unidos. Até fui bem. Fiquei em segundo.
Seus pódios e sua história atraíram grandes marcas e reconhecimento internacional, inclusive do multicampeão Tony Hawk. Você esperava tanto sucesso?
Nem nos meus sonhos. Vivia jogando o game do Tony (Tony Hawk’s Pro Skater). Não acreditei quando ele me convidou para participar de um vídeo. O [skatista] Rodrigo Leal foi outro incentivador importante. Fez uma vaquinha para eu disputar uma prova internacional, em 2018. O Tony participou. Aí eu o conheci pessoalmente.
A admiração do Tony transformou-se em apoio sistemático. Que importância material e simbólica isso tem na sua carreira?
Tony me apadrinhou. Ele passou a me ajudar num milhão de coisas. Agitou vários patrocínios e oportunidades profissionais, como integrar a marca dele (Boardhouse), e me presenteou com pernas mecânicas. Viramos amigos.
A projeção mundial rendeu até participação no novo clipe do Metallica. Como rolou essa história?
Outra surpresa. Fiquei amarradão. A banda achou que a minha história combinava com a música “Too far gone?”. Então me convidou para participar do clipe. Eu precisava encaminhar as imagens pedidas em dois dias. Tinha algumas no meu acervo pessoal. As outras eu gravei, de forma relâmpago, em São Paulo. Não conseguiria nenhuma dessas façanhas sem o apoio do Davison Fortunato, meu team manager (gerente de carreira). Somos parceiros de equipe e amigos.
Você curte rock?
Sim, gosto de rock e de rap. Nos treinos mais puxados, ouço rock.
Falando em treinos puxados, você está otimista para voltar a vencer no STU do Rio, como fez no ano passado?
Estou treinando para isso, com muitas manobras em mente. Imagino que tenha boas chances nesta e em outras competições.
De quebra, você vai curtir as belezas cariocas?
Adoraria. Ainda não conheço o Cristo, o Pão de Açúcar. Vai ficar para outra vez. Combinei de encontrar o Tony depois do STU. Vida corrida.
Essa correria ruma para o sonho olímpico?
Claro, é o grande sonho. Quero disputar os Jogos de 2028.
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Alexandre Carauta é jornalista e professor da PUC-Rio, doutor em Comunicação, mestre em Gestão Empresarial, pós-graduado em Administração Esportiva, formado também em Educação Física. Organizador do livro “Comunicação estratégica no esporte”.