Batuque da embaixadinha enfeitiça todo mundo
Alegria nos intervalos do Maraca, Jankel Schor eternizava essa irresistível comunhão entre a bola, a destreza corporal e a brincadeira que nos faz criança
Ela beira a unanimidade. Até o perna de pau a deseja, arrisca uma graça, pose de campeão.
Embaixadinha nasceu para a irreverência, não para o pódio. Seu parentesco circense encanta, nos faz criança.
Frequenta desinibida gincanas, festas infantis, pátios escolares. Já pintou em palanques, quermesses, formaturas. Nem chefes de Estado e celebridades resistem ao feitiço que embalou a tabelinha entre Pelé e Ronald Golias no antológico esquete da Família Trapo, humorístico da TV Record nos anos 1960.
O pereba, o astro internacional, a rainha Marta, o boleiro aposentado, o tio metido a craque, todos a cortejam. Buscam a intimidade festiva dos amantes, mesmo que dure poucos segundos.
Dispensá-la do aquecimento – na pelada ou na decisão do campeonato – seria tão impossível quanto excluir a própria pelota. Tão indesejável quanto abafar o guri refugiado na alma, louco para brincar.
Feita de brisa, embaixatinha estranha regras, limites, tutelas. Cultiva a liberdade plástica e contagiante da dança. Nela se lambuza a felicidade solar das rodas de altinha.
Alguns a excutam com a cabeça, a coxa, o ombro, com bolinha de papel, de pingue-pongue, de tênis. Outros inventam combinações de foca, prontas pro show no Largo da Carioca ou no programa de auditório. Viram sucesso no Tik Tok.
Não necessariamente tamanha destreza corresponde a eficiência esportiva, espetam os rabugentos. Inveja, muita inveja.
A beleza malabarista não a livra de esporádicas berlindas. Volta e meia a acusam de firula contraproducente ou de ofensa ao adversário. Bobagem. Fosse assim, poetas como Garrincha e Ronaldinho seriam condenados em vez de aclamados.
O diminutivo expressa seu afeto popular, universal. Embaixadinha é o sorriso da bola. Estampa o casamento com a arte, a descontração, a vivacidade corporal.
O Maracanã sorria esse sorriso quando o comerciante aposentado Jankel Schor iluminava o intervalo com memoráveis embaixadinhas. Chuteira amarrada na canela, camisa dentro do calção, concentração de enxadrista, ele valsava pela imensidão verde acompanhado da esfera bailarina. Inseparáveis.
Divinamente habilidoso, nunca permitiu à gravidade sequestrar-lhe o par perfeito enquanto atravessava o gramado. Coisa de bamba.
Mais do que admirá-lo, os torcedores queríamos ser Jankel nas tardes de domingo. Queríamos brincar de super-herói.
“Foi Seu Jankel que me inspirou. Fez grandes exibições por dez anos. Era uma atração a mais do Maraca. Ele sempre representou o futebol raiz”, enaltece o recordista de embaixadinhas José Luiz da Silva Berto, o Professor Caniddia. “Já me apresentei em dois intervalos de jogos do Flamengo. Espero novas oportunidades para homenageá-lo e fazer a alegria da galera”, completa o potencial sucessor.
Russo naturalizado brasileiro, torcedor do América, Jankel Schor nos deixou semana passada, aos 98 anos. Suas exibições nos conectavam ao reino onírico da embaixadinha. Inesquecível.
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Circo doméstico
Peço licença para uma singela lembrança pessoal:
Nem Rivellino, nem Dinamite, tampouco Zico. Na arte da embaixada, é o pai quem impera. Junta gente para vê-lo controlar a redonda como se bebesse um copo d’água. Perdem a conta das repetições.
Os olhos do filho aplaudem fascinados. Herdarei os poderes mágicos e um dia farei igualzinho, sonha o moleque. Aguarda ansioso o melhor truque, na volta do passeio dominical à Quinta. O sujeito sobe dois lances de escada com a dente de leite batucando sobre o peito do pé. Os degraus até a porta de casa alcançam as nuvens.
A vida corre mais que as pernas e aposenta as façanhas de circo. A herança imaginada se dissolve no tempo. Nem por isso aquela escada deixa de ecoar algo inestimável: cumplicidade lúdica. O batuque da embaixadinha lembra a importância de preservá-la.
(O pai, Juracy, cria de Santo Cristo, festeja 85 anos domingo agora. Suas proezas de videogame quicam na memória e no coração de menino. Tive a sorte de contemplá-las.)
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Alexandre Carauta é jornalista e professor da PUC-Rio, integrante do corpo docente da pós em Direito Desportivo da PUC-Rio. Doutor em Comunicação, mestre em Gestão Empresarial, pós-graduado em Administração Esportiva, formado também em Educação Física. Organizador do livro “Comunicação estratégica no esporte”.





