Conheça a história do Campo de Santana
Oficialmente chamado de Praça da República, esse histórico logradouro carioca tem um rico passado
Prepare-se para desbravar o Campo de Santana, desde seus tempos pantanosos, quando aquela área era toda “semeada de charcos, brejos e alagados”, até seu passado glorioso, de aclamações e proclamações.
Segundo Vivaldo Coaracy, em seu livro “Memórias da Cidade do Rio”, o vasto campo desde a Rua da Vala (atual Rua Uruguaiana) até o Mangal de São Diogo (Cidade Nova) era conhecido como “Campo da Cidade”. Também era conhecido como “Campo de São Domingos”, devido à capelinha em devoção a São Domingos de Gusmão, que havia sido construída, em 1706, fora dos limites da então cidade, em um descampado pantanoso, na atual confluência das avenidas Presidente Vargas e Passos (capela que depois deu lugar a igreja que foi demolida nos anos 1940 para dar lugar à grande avenida).
Maria Fernanda Bicalho, em seu livro “A Cidade e o Império – o Rio de Janeiro no século XVIII”, de 2003, relata que aquela região “servia de refúgio para negros fugidos, soldados desertores, pessoas vadias e criminosos de todo tipo”. Não à toa, era também ali que tantas irmandades católicas criadas por pardos, pretos livres e escravizados escolhiam construir suas capelas e igrejas (um exemplo é a Igreja de N. S. do Rosário, de 1725 — erguida na então Rua da Vala, atual Rua Uruguaiana, praticamente nos limites da cidade civilizada).
Com a urbanização desse grande vazio pantanoso, por meio de uma seqüência de aterros, no século XVIII, sobraram três espaços livres: o Rossio Grande (Praça Tiradentes), o Largo de São Francisco de Paula e o Campo de Santana, que ganhou essa denominação em 1753, por causa da irmandade dedicada à Santana, fundada na capela de São Domingos e que ao final daquele século teria seu próprio templo no local onde foi erguida a estação ferroviária Dom Pedro II (depois demolida, nos anos 1940, para dar lugar à Central do Brasil).
Com a chegada da Corte Portuguesa ao Brasil, em 1808, o Rio torna-se a capital do Império Ultramarino Português e, entre inúmeras transformações urbanas, políticas, econômicas e sociais, passa a contar com considerável contingente militar, tendo em vista sua inédita posição de capital europeia do outro lado do Atlântico. Como consequência disso, o Campo de Santana torna-se lugar de manobras e exercícios militares e, nos anos seguintes à chegada da Coroa, um Quartel General é ali construído (entre 1811 e 1818).
Além disso, a criação do Reino Unido em 1815 traz ao Campo de Santana prédios públicos em padrões jamais vistos até então. São dessa época o Museu da Casa da Moeda do Brasil (antigo Museu Real, de 1818), a Faculdade Nacional de Direito da UFRJ (antigo Palácio Conde dos Arcos, de 1818, também Senado Imperial e Federal), o Quartel General do Exército (1811), entre outros.
CAMPO DE TOUROS
Também é dessa época a construção da sua arena de touradas, famosíssima no Brasil Imperial. A arena do Campo de Santana havia sido construída para as comemorações de Coroação do Rei D. João VI, em 1818. As touradas eram eventos extremamente populares, considerando-se que os desportos modernos ainda não faziam parte da nossa cultura. Misturavam atrações musicais e até circenses nos intervalos.
Para incentivar a frequência da população em geral, os organizadores de touradas de tudo faziam para atrair sobretudo aqueles de alta estirpe. A presença deles já era a melhor das propagandas; a solução era torná-las eventos sociais, com muito entretenimento civilizado e elegante, à moda europeia.
Mas e o Imperador e sua família? Será que já “deram as caras” em uma dessas touradas? Por mais que as touradas fossem antigas e relevantes tradições ibéricas — o que por si só já justificaria que a Família Imperial lá fosse dar o seu ar da graça prestigioso —, o lado humanista e civilizatório de D. Pedro II sempre falou mais alto. O Imperador nunca pôs os pés em uma tourada no Rio, nem mesmo quando eram grandes eventos em homenagem a efemérides da vida de Sua Majestade Imperial.
Além do Campo de Santana, havia arenas perto do Gasômetro, em Laranjeiras (Rua Ipiranga), na Rua Marquês de Abrantes (em espaço vazio que chamavam de circo). Em 1908, o governo republicano vetou essa atividade de vez. Estava em ascensão, naquela época, um tal esporte bretão que acabou por tomar nosso povo de assalto.
O CAMPO DA ACLAMAÇÃO
Apesar de pouco debatido, parece coerente pensar que o que ocorreu no Rio de Janeiro no dia 12 de outubro de 1822 foi o que mudou tudo para os rumos da nossa independência; muito mais do que o Dia do Fico, em 9 de janeiro de 1822, e até mesmo mais do que o Grito do Ipiranga — que até hoje ninguém sabe se aconteceu mesmo.
Pedro comemorava seu aniversário naquele 12 de outubro, justo ao retornar da Província de S. Paulo (onde teria dado o “Grito do Ipiranga”). Ao chegar à Corte, foi sagrado “Imperador Constitucional e Defensor Perpétuo do Brasil”. Nas sacadas do então Palácio Conde dos Arcos (atual Faculdade Nacional de Direito da UFRJ, em uma das laterais do Campo de Santana), o ainda Príncipe do Brasil, acompanhado de sua esposa, D. Maria Leopoldina de Habsburgo, é aclamado pela multidão que ocupava o Campo de Santana praticamente inteiro. Foi a famosa Aclamação de D. Pedro I, o grande momento popular, verdadeiro e legitimante que o então Príncipe precisava para dar passos mais firmes em direção à emancipação do Brasil.
Vale dizer que, a partir daí, o Campo de Santana ficou, obviamente, conhecido como Campo da Aclamação.
UM CAMPO DE FESTA E DETRITOS
Com o crescimento da cidade, o Campo de Santana vai-se consolidando como um espaço onde não se construiria nada, uma área aberta, descampada por vocação. No máximo, estruturas temporárias e comemorativas foram erguidas nesse espaço tão especial, feito sob medida para os muitos festejos da nobreza, do povo, dos militares e da Igreja. Mas toda essa especialidade não salvou o Campo de Santana do pior dos destinos: ser um vazadouro de detritos.
Assim como se usava livremente a Baía de Guanabara, ou qualquer corpo hídrico, como local para despejo de lixo de todas as espécies, o Campo de Santana também acabou virando latrina. Segundo a arquiteta Claudia Brack Duarte, em seu artigo de 2015 intitulado “Campo de Santana: no século XXI como no século XVIII – de volta à condição de refúgio dos excluídos” os resíduos eram usados “com o intuito de ‘aterrar’ alagadiços e áreas sujeitas a inundações”.
Aparentemente, as dimensões do Campo de Santana favoreciam “a dissipação dos gases e cheiros provenientes, pouco incomodando a população rarefeita do entorno”. É o que provavelmente explica a tolerância em relação ao descarte de lixo e esgoto por parte de importantes instituições e ricos e influentes cidadãos que viviam em seu entorno.
Em seu livro de 1944, “O Parque da República, antigo da Aclamação”, Francisco Agenor de Noronha Santos deixa bem claro que “o Campo continuou como vazadouro de todas as imundícies da circunvizinhança”.
Outra preocupação eram os ditos “desocupados” e “malfeitores”, que, segundo documentos policiais, depredavam a já escassa arborização do campo. Segundo Noronha Santos, “a esses indivíduos aliavam-se comumente mendigos, ladrões e capueiras, muitos deles negros escravizados, que não só destruíam as árvores, como praticavam no campo as maiores indignidades, apesar da repressão exercida pela polícia contra capueiras e escravos, com os açoites e as célebres surras de camarão”.
Devido a uma seca muito extrema no ano de 1809, entendeu-se necessária a construção de um chafariz no Campo de Santana, que foi feito usando as águas do Rio Comprido. Em 1818, foi inaugurado o “Chafariz das Lavadeiras”, feito de pedra. Esse tipo de construção era de extrema importância para o povo na época. Não havia na Corte um sistema de abastecimento. Estima-se que, em 1836, o “Chafariz das Lavadeiras”, no Campo de Santana, fosse responsável por abastecer mais de 2 mil lavadeiras, garantindo seu sustento.
Em 1843, Henrique Beaurepaire Rohan, engenheiro militar e Diretor de Obras Municipais do Município da Corte, propõe à Câmara Municipal um documento destinado às obras que “interessam à salubridade pública” e “aformoseamento do município e cômodo de seus habitantes”. O capítulo destinado às praças da cidade começa afirmando a importância do Campo da Aclamação.
Em 1869, vem a solução. O Imperador D. Pedro II convida o paisagista e horticultor francês Auguste Glaziou a ser o diretor de Parques & Jardins da Casa Imperial. A razão do convite foi o seu primoroso trabalho realizado no paisagismo da Quinta da Boa Vista, na reforma do Passeio Público e na idealização dos jardins no Palácio de Nova Friburgo (atual Palácio do Catete). Tendo aceitado o convite, pouco tardou para que Glaziou ficasse conhecido como “o paisagista do Imperador”.
O que Glaziou fez foi transformar o antigo Campo da Aclamação em um jardim paisagista moderno, com cursos d’água, pontes, grutas, cascatas e muitos ornamentos em ferro fundido. O atual Campo de Santana foi inaugurado em 1880, após oito anos de obras.
A PROCLAMAÇÃO DA REPÚBLICA
Em 15 de novembro de 1889, o Exército, liderado pelo Marechal Deodoro, “derruba” a Monarquia e institui um governo republicano. Há quem diga que foi um golpe “na calada da noite” e que o povo simplesmente assistiu a tudo aquilo “bestializado”.
A cena épica retratada por Benedito Calixto tem ares revolucionários, poéticos, altivos, talvez como uma forma de legitimar o novo governo que nascia. Todo regime precisa criar seus símbolos e mitos. O que importa é que o nosso Campo de Santana — ou seria talvez Praça da República? — faz parte dessa história e de tantas outras.
Para quem quiser “revisitar” essa parte da história do nosso país, vale a pena a visita à Casa Histórica de Deodoro, bem pertinho do Souza Aguiar. É uma autêntica casa colonial carioca que foi felizmente preservada por ter sido a residência do Marechal Deodoro. Hoje, a Museologia do Exército Brasileiro administra o imóvel, usando-o para narrar esses acontecimentos históricos que culminaram na República.
*Daniel Sampaio é carioca do Grajaú. Advogado, memorialista e ativista do patrimônio. Fundador do perfil @RioAntigo no Instagram.