Ripley: o perigoso e fascinante mundo de um psicopata
Série da Netflix faz um retrato impressionante do que passa na cabeça de um psicopata
Uma das séries de maior sucesso no momento, “Ripley” é um prato cheio. São muitas as razões para se acompanhar a série baseada no personagem antológico criado pela autora Patricia Highsmith: a fotografia irretocável que cria lindas imagens em preto e braço, a oportunidade de (re)ver a Itália, além do trabalho de grandes atores. Mas a série oferece ainda a oportunidade de entrar na mente de um psicopata e entender como funciona a sua lógica.
Ripley apresenta o traço principal de um psicopata: a frieza e a falta de empatia para com os outros, o egocentrismo e a mais absoluta falta de remorso. Não apenas com desconhecidos, mas até mesmo para quem o acolhe ou oferece oportunidades.
Na trama, o protagonista vai à Itália tentar convencer o filho de um homem rico a voltar pra casa. Bom vivant, o rapaz resiste em retornar para os Estados Unidos, passando os dias ao dolce far niente da Itália, entre pincéis e mergulhos no mar. Ripley cria um plano para, aos poucos, ir tomando a sua personalidade.
Outras obras do audiovisual já exploraram, de alguma forma, este enredo. Em “A Malvada”, a personagem de Bette Davis oferece uma chance como assistente para a personagem de Anne Baxter. A fixação na chefe faz com que a própria Bexter construa uma obsessiva carreira rumo ao estrelato. O filme serviu de inspiração declarada para o novelista Gilberto Braga criar “Celebridade”, um de seus maiores sucessos. No enredo, Laura Prudente da Costa (Claudia Abreu) cria um plano de vinganç a para tomar tudo que pertence à Maria Clara Diniz (Malu Mader).
O que chama a atenção em “Ripley” são os silêncios que nos permitem entender perfeitamente o que vai à cabeça do personagem, num trabalho primoroso do ator Andrew Scott. Aos poucos, ele se apropria da personalidade, da voz, dos bens, dos quadros e de tudo que define a existência de seu mais novo amigo Dickie – ainda que para isso seja preciso mentir, dissimular, matar e até ocultar cadáveres.
Ao contrário de outros filmes e séries, que mostram psicopatas de forma excessivamente agressiva, Ripley é apresentado como uma pessoa absolutamente comum, amigável, charmoso e gentil, o que deixa tudo ainda mais assustador – e difícil de ser identificado socialmente.
Outro traço muito interessante, abordado com bastante sutileza na série, é o comportamento sexual de Ripley. Sem nunca ser óbvio, fica nas entrelinhas uma indefinição quanto ao interesse do personagem, o que acaba por deixar toda a construção da personagem e da trama ainda mais rica.
A psicopatia (ou transtorno antissocial de personalidade, como dizemos os psiquiatras) atinge até 2% na população mundial, o dobro da incidência de casos de esquizofrenia. No Brasil, as estimativas apontam de 2 milhões a 4 milhões de pessoas com este transtorno de comportamento.
O transtorno antissocial pode ser difícil de ser tratado e depende de vários fatores, como a gravidade do caso e a vontade do paciente de participar. A psicoterapia pode envolver o tratamento do abuso de substâncias (muito comum nesse transtorno), técnicas para melhorar as habilidades socioafetivas, como as de manejo da raiva, da violência e reconhecimento da importância de outros agentes sociais, como a família, a escola, e os amigos. Em alguns casos, o uso de medicação também pode ser indicado, se tratada com psicoterapia.
Analice Gigliotti é Mestre em Psiquiatria pela Unifesp; professora da PUC-Rio; chefe do setor de Dependências Químicas e Comportamentais da Santa Casa do Rio de Janeiro e diretora do Espaço Clif de Psiquiatria e Dependência Química.