Manifestações ganham as fachadas de prédios através de projeções
Frases, desenhos e filmes estampados em paredões de cimento refletem a busca por uma nova forma de manifestação
Desde que a pandemia começou a fazer estragos por aqui, o principal cartão-postal do Rio vem ganhando novos looks, por assim dizer. A 709 metros acima do nível do mar, o Cristo Redentor já surgiu de máscara, trajando um jaleco branco e exibiu bandeiras de 150 países atingidos pelo novo coronavírus. Isso tudo graças a imagens projetadas à base de uma técnica sob medida para superfícies irregulares.
O show de luzes, no entanto, não se limita às bandas do Corcovado. Em diferentes pontos da cidade, veem-se projeções (mais caseiras) de frases, desenhos e até filmes na fachada de prédios, como o que acontece em outras partes do mundo. “Quando terminei de passar Hair Love (curta premiado com o Oscar neste ano), os vizinhos que assistiram ao filme agradeceram e bateram palmas. Levar um pouco de arte às pessoas neste momento é uma forma de abraçar quem está longe”, diz a professora Karol Abrantes, moradora de Copacabana.
Tamanho é o sucesso dessas projeções que grupos se formaram para incentivá-las. Muitas delas são publicadas na conta do Instagram do Projetemos, um coletivo de arte digital criado no meio da pandemia. Ele reúne cerca de 200 pessoas das cinco regiões do país dedicadas a produzir conteúdo para interessados em fazer exibições de suas janelas e varandas, tudo gratuito e pensando na pauta do dia.
“Logo cedo, definimos os temas que se transformam em imagens para todos que queiram projetá-las”, explica Felipe Spencer, cofundador do projeto. Exemplos: a infeliz frase “E daí? Lamento”, proferida pelo presidente Jair Bolsonaro a propósito do elevado número de mortos pela Covid-19, e uma ilustração do menino João Pedro, de 14 anos, assassinado na casa de familiares, em São Gonçalo, enquanto cumpria as recomendações de isolamento social.
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Outra iniciativa do gênero, a Janela da Pressão foi bolada por uma agência especializada em ações de impacto Participar do jogo de luzes envolve alguns desafios. À frente da Janela da Pressão, Beatriz Gonçalves lembra que as mensagens projetadas em fachadas devem ser simples e diretas para ter impacto. social. É dela a campanha que tem iluminado as noites de terça e quinta na Rua São Salvador, em Laranjeiras, com mensagens de combate ao vírus e sobre os problemas que ele expõe – como a crise no SUS e a falta de dinheiro para a ciência.
A visibilidade depende de fatores técnicos, como alto contraste e letras grossas. É bom saber, entre outras coisas, a distância da tela ó ops, da parede – onde se dará a projeção, para calibrar o foco. Sem um projetor razoável, porém, a mágica não acontece. Há modelos que custam desde 500 reais, que alcançam pequenas distâncias, até os de 20000 reais. “O meu tem saída de som, só que eu praticamente não uso para não incomodar os vizinhos”, conta Karol, de Copacabana, que comprou o equipamento no início da quarentena. Embora a prefeitura exija autorização para as projeções, com previsão de multa e outras sanções para quem não obtiver aval oficial, nenhuma permissão do tipo foi solicitada em 2020 – ainda que muitas luzes estejam levando vida ao concreto.
O fenômeno ganhou escala e especialistas começam a refletir sobre ele. Um dos motivos a embalar essa onda é, para muitos, o desejo de ocupar espaços públicos, esvaziados pelas necessárias medidas de isolamento. Manifestações luminosas em defesa do acesso universal à saúde, realizadas simultaneamente em Bruxelas, Portland, Buenos Aires e em outras cidades do mundo, em 7 de abril, foram um contundente exemplo disso.
No Brasil, percebe-se uma preferência por exibições de cunho político, algo compreensível dada a efervescência do debate nos dias de hoje. “A revolta das janelas tem uma característica única e muito particular brasileira. O cenário político certamente deu enorme impulso às projeções”, analisa Giselle Beiguelman, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP.
O barateamento e a diversificação dos projetores nos últimos tempos abrem espaço para a apoteose de luzes, uma linguagem que se encaixa perfeitamente no repertório dessas gerações familiarizadas com o vocabulário audiovisual, graças à internet. Como fez em tantos campos, a pandemia deu um empurrão a um movimento que se avistava lá atrás. Um dos marcos inaugurais das projeções modernas ocorreu em Nova York, graças aos jovens ativistas do Occupy Wall Street, que lutavam contra as distorções sociais e econômicas provocadas, na visão do grupo, pelo mercado financeiro. Em novembro de 2011, eles lançaram seu símbolo nas fachadas de vários prédios de Manhattan.
Quatro anos mais tarde, o mesmo recurso foi usado por estudantes que saíram às ruas para protestar no Chile contra a reforma educacional no país. Agora, vieram a quarentena e toda necessidade que ela embute de as pessoas se expressarem. “Por meio das projeções, elas podem manter algum nível de participação em sociedade”, diz Grayson Earle, integrante do The Illuminator, coletivo americano especializado em projeções. É, só a telinha do celular não basta mais.