Maria Ribeiro: “Vamos em frente como meninos diante de bolas, combinado?”
Para atriz e escritora, é preciso voltar a fazer planos, da comida de amanhã ao corte de cabelo da revista, passando pela viagem do ano que vem
Eu sempre achei que ir ao cinema fosse o meu programa favorito. Isso, antes do Joaquim. Mesmo em tempos de Festival do Rio — e olha que eu passei as últimas semanas tendo a certeza de que cada filme na sala escura era o meu bloco de Carnaval predileto —, o nome português, de origem hebraica, associado à imagem daquele bebê sorridente que agora encontro nas festas de família, transformou qualquer ideia de paraíso em um passatempo meio B. Assim como qualquer praia, festa ou date.
Porque o carioca Joaquim, apesar de contar com pouco mais de 1 ano, já chegou a este mundo sendo uma espécie de vacina misturada com cura, um milagre junino, um vale-felicidade infinita, um VAR que deu certo, um “vamos de novo” com 100 por cento de exclamação e zero de dúvida.
A propósito, vamos de novo?
Sim, de novo. Outra vez. Urna, camisetas, coragem, esperança, debate, alegria, tretas familiares, WhatsApp, redes sociais, adesivos no peito, no carro, no discurso, no modo de andar na rua e falar com desconhecidos. Estamos em mais um mês de outubro e precisamos passar por ele de banho tomado e bem-vestidos, cabeça em pé e coração puro, como se, nunca, nada, tivesse doído. Nem a morte, nem o fim do amor, nem aquele irmão que deixou de se importar, nem o fim do Pantanal, nem a herança da Covid, nem a figurinha do Neymar, nem a Damares, nada. Vamos todos em frente como meninos diante de bolas, combinado?
“Antônio passou por aqui rápido e forte como um cometa, e nos ensinou uma porção de coisas. De como, na falta de garantias, é melhor amar por extenso, grande, deixando vazar”
Como Joaquim, na praça da Pires de Almeida, na semana passada. Eu não sei por que, mas a imagem do sobrinho do meu filho foi, pra mim, sem que eu percebesse e especialmente naquele dia, a redenção de tudo o que os últimos anos nos tiraram: o amor, a fé, o sentido, a justiça e, principalmente, a perspectiva. Fazer planos, sabe? Da comida de amanhã ao corte de cabelo da revista, passando pela viagem do ano que vem.
Alguém disse certa vez que tudo que é divino é sem esforço, e agora já não sei se foi Domingos Oliveira, Jorge Mautner ou um para-choque de caminhão, mas confesso que nunca tinha entendido isso de forma tão concreta até dividir aquela praça de Laranjeiras com o pequeno Joca. Deus é espontaneidade, vejiner.
Joaquim não sabe, e o leitor também não, mas o menino chegou depois de uma despedida muito dura. Seu irmão Antônio passou por aqui rápido e forte como um cometa, e nos ensinou a todos uma porção de coisas que volta e meia a gente esquece. De como, na falta de garantias, é melhor amar por extenso, grande, deixando vazar.
Era 2018. E eu só lembro que foi logo depois da Copa, e que foi de repente e horrível, como sempre é. Hospital, médicos, exames de sangue, palavras que foram ficando difíceis até chegar à mais difícil de todas: leucemia.
Eu, que até poucos anos antes, não sabia quase nada da doença, já vinha me familiarizando um pouco com os termos, porque Miguel, um grande e querido amigo, havia passado pelo mesmo com sua filha Manoela. Que, àquela altura, já estava melhor e de volta “aos sambas”, digamos assim, já que sua família sempre foi — e é, e segue sendo — de batuques e encontros, sem falar no azul e branco da Portela.
Mas a vida é a vida, mesmo sem ela.
No ano seguinte, Antônio e Manoela se foram. Com apenas uma semana de diferença, nos despedimos dos dois. Acho que foi em junho, sei que foi muito triste. Mas o sol nasce de novo. E brilha, como na canção. Nunca sei se isso é Cartola ou Nelson Cavaquinho, mas sei que anteontem, de surpresa e quase sem combinar, eu conheci o outro Joaquim. Sim, são dois. E eu não tinha me dado conta da coincidência.
O neto do meu ex-marido Paulo, filho da minha enteada Mariana, sobrinho do meu filho João, tem 1 ano e 4 meses. E o filho dos meus amigos Miguel e Paula acaba de fazer 6. E Joaquim, não é por nada, quer dizer “concedido de Deus”, ou qualquer coisa assim.
Eu não sei o que vai ser do nosso país nas próximas semanas. E também não quero politizar a existência de garotos que nem sequer sabem dos riscos do desmatamento da Amazônia e da desigualdade que grita nos nossos cartões-postais. Mas a coincidência dos nomes, e o meu afeto pelos envolvidos, sei lá, tudo isso me deu vontade de acreditar e de tentar de novo.
Vai dar certo, Brasil.
Por mim, por você e pelos pequenos Joaquins.