Cariocas se destacam na cena do trap, estilo musical mais ouvido na cidade
Contabilizando multidões de seguidores e altas cifras em shows, artistas como MC Cabelinho, Filipe Ret e Xamã mostram que a cidade é celeiro do gênero
A sessão de fotos para esta reportagem transcorria tranquilamente à beira da piscina do Hotel Fairmont, em Copacabana, quando três jovens fãs se infiltraram na cena para clamar por autógrafos e fotos ao lado de seus ídolos. Filipe Ret e MC Cabelinho, que ali estavam, talvez não sejam nomes conhecidos do público de todas as faixas etárias, mas figuram entre os expoentes nacionais do trap, a vertente do rap que virou o gênero musical mais escutado no Rio. Quando o Spotify, na ocasião do aniversário da cidade, em março, divulgou os artistas mais ouvidos nestas praias, veio a confirmação do que já se observava: sete dos dez que ocupavam o topo eram trappers daqui, entre eles justamente MC Cabelinho e Filipe Ret, além de Orochi, Dallass, Xamã, L7nnon e Tz da Coronel. No ranking nacional dos fluminenses mais ouvidos no país, eles também estavam lá: cinco eram representantes do trap made in Rio, cidade que virou celeiro de talentos desse estilo em franca ascensão nas plataformas de streaming, nas redes sociais e nos festivais de música. Um ritmo, aliás, que tem tudo a ver com a cultura local, pela tradição de converter em canção a linguagem da rua — uma de suas marcas registradas. “Num show desses, você vê garotos e garotas na plateia falando da mesma maneira de quem está no palco, é uma turma só, há uma identificação”, afirma o crítico musical Leonardo Lichote.
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Uma das características do trap carioca, que tem suas raízes no funk, é justamente a proximidade com o batidão nascido nos subúrbios a partir de influências da funk music americana e que seria exportado para todo o Brasil nos anos 1990 e 2000. Não à toa, alguns dos principais nomes da ascendente onda, como os MCs Cabelinho e Poze do Rodo, migraram do funk para o trap, a mesma trilha de outros vários. Talento que brotou na área de Sepetiba, Xamã, 33 anos, é autor do hit que une os dois ritmos, Malvadão 3, o campeão no Spotify no primeiro semestre de 2022. L7nnon, 29 anos, que despontou em Realengo, emplacou dois sucessos ao lado de funkeiros, também fazendo o casamento de ambas as batidas — como no viral Desenrola, Bate, Joga de Ladin, reproduzido em escala exponencial nas dancinhas do TikTok. Para MC Cabelinho, 27 anos, 12 milhões de seguidores no Instagram e um dos grandes nomes do trap, a ligação com o funk ajuda a explicar por que o ritmo conquista tantos corações e mentes cariocas, perpassando as mais diferentes tribos, do subúrbio à Zona Sul. “No Rio, funk e trap andam lado a lado”, observa.
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Originalmente, o trap é um subgênero do rap, que se distingue por ser mais eletrônico, lisérgico e com um flow (aquela fluidez no cantar) menos arrastado, sincopado. Tudo isso junto e misturado produz um ritmo que vem contagiando os jovens. No Brasil, é frequente o uso do software Autotune — empregado na indústria da música normalmente com o objetivo de manter a afinação da voz — para distorcer os vocais no trap. Surgida no fim da década de 1990 em Memphis, nos Estados Unidos, a nova batida só viria a se popularizar uns dez anos mais tarde, em Atlanta, já com seu nome de batismo, derivado das trap houses, casas de produção e venda de drogas, universo ao qual muitos dos pioneiros do gênero eram ligados. O estilo, mais contemplativo, já vinha acumulando ouvintes brasileiros, mas acabou ganhando o empurrão decisivo na pandemia, com o impulso das redes sociais e dos aplicativos de vídeo. Vice-presidente artísitico do Rock in Rio e do The Town, Zé Ricardo defende que essa combinação do trap com o frenesi das redes deu liga porque ambos se situam sob os mesmos ventos. “Não é o TikTok que divulga o trap, nem o trap que é combustível para o TikTok. Na verdade, eles fazem parte de uma coisa só”, diz.
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No recheio das letras, encontram-se constantes referências a grifes de alta-costura e carrões, o que reflete a escalada econômica proporcionada por quem vem se notabilizando nessa seara musical. Muitos se tornaram milionários. Em fevereiro, MC Cabelinho exibiu seu novo veículo: uma BMW X6M Competition vermelha, avaliada em 1 milhão de reais. Ele contou ainda, recentemente, ter recebido meio milhão de reais em uma semana com quatro shows, mais de 100 000 reais por cada passagem pelo palco. Filipe Ret, 38 anos, virou notícia (nesse caso, preferiria não) ao ter seu automóvel apreendido na blitz da Lei Seca: um McLaren GT preto, no valor de 3 milhões de reais. No figurino da maioria, constam pesados cordões de ouro e anéis. Na boca, sobressaem os “grillz”, aquelas grades dentárias que são moda no rap. “Estamos falando de jovens de origem pobre. O Xamã, por exemplo, vendia bala na rua e hoje tem um Porsche”, lembra Zé Ricardo, enfatizando um impacto mais abrangente dessa turma em seu entorno. “Ele e outros são inspiração para os meninos de favela, mostrando que podem chegar lá através da arte.” E inspiram não apenas a garotada dos morros: também jovens do asfalto se encantam e começam a se arriscar aqui e ali na batida do trap.
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Na gestão de suas carreiras, essa bem-sucedida ala de artistas criou um universo diverso do que rege a maior parte do mercado da música, mantendo mais controle sobre as decisões. Vários possuem seus próprios selos, como o Nadamal (de Filipe Ret), o MainStreet (de Orochi) e o Bairro 13 (de Cabelinho). “Assim, eles dão oportunidade e visibilidade para novos talentos, o que contribui para que o gênero siga se renovando e se fortalecendo”, avalia Daniel Alves, irmão do produtor Papatinho, sócio dos selos Papatunes e Hip Hop Rare e na concepção do Alma Festival. A estratégia vem dando certo. Um dos nomes mais estelares dessa efervescente constelação, Cabelinho contabiliza mais de 9 milhões de ouvintes mensais no Spotify e quase 1,5 bilhão de visualizações no YouTube — seu Little Love (2022) fez a melhor estreia de um álbum de rap/trap na história do aplicativo no Brasil. Filipe Ret, o outro menino prodígio, conta com 30 milhões de seguidores, cerca de 7 milhões de ouvintes mensais no Spotify e quase 1 bilhão de views no YouTube. Seu álbum Lume (2022) ingressou no seletíssimo Top 3 global do Spotify.
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Em meio a tão portentosos números, o modo como drogas, armas e mulheres são citadas nas faixas agita as labaredas de uma polêmica que ronda essas músicas. Cria do morro do Cantagalo-Pavão-Pavãozinho, MC Cabelinho defende que eles não fazem nada além de descrever o mundo de onde vieram. “Eu não vou ficar cantando histórias da madame que passeia com o cachorrinho na orla de Copacabana se estou vendo a polícia entrando e atirando, e inocentes baleados. Falo da minha realidade, e tem gente que interpreta como apologia ao crime”, argumenta. Atualmente no ar como o Hugo de Vai na Fé, sua segunda novela na TV Globo, Cabelinho dá vida a um jovem que tenta sair do tráfico e se manifesta contra a perseguição aos cantores de favela. “O engraçado é que estou fazendo um personagem que atira na polícia e ninguém diz nada”, provoca. E, de sucesso em sucesso, eles vão sendo assimilados e admirados. “A galera se incomoda, acontece o tempo todo, mas quando você vai a um festival respeitado, à televisão, chega uma hora que não tem como, todo mundo vai ter que abraçar”, fala Filipe Ret.
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Marcadamente masculino, o meio do trap é muitas vezes criticado pelo teor machista das letras, que não raro se referem às mulheres como objeto sexual. Ainda há pouquíssimas trappers no topo desse mercado. Embora algumas cantoras, entre elas as fluminenses Azzy (também no elenco de Vai na Fé), Ebony e Slipmami, já sejam conhecidas do público que consome esse estilo musical, elas ainda estão longe de protagonizar eventos ou receber cifras semelhantes às dos colegas homens. “Se formos fazer o corte dos vinte maiores artistas de trap, levando em conta sua popularidade, não achamos nenhuma mulher”, enfatiza Leonardo Lichote. Não que não se vislumbrem gradativos sinais de melhora no cenário. “Muitos MCs estão evoluindo, eu estou, a sociedade está”, analisa MC Cabelinho.
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As controvérsias não são um freio ao avanço desses músicos, que aparecem com cada vez mais frequência e destaque nos grandes festivais de música. O Universo Spanta, o Rock The Mountain e até o Rock in Rio vêm escalando estrelas dessa vertente, que traz público e dinheiro. “Do último ano para cá, a fatia de mercado do rap avançou mais rapidamente em relação à de outros gêneros. Não há mais como os grandes festivais não olharem para esses artistas”, comenta o empresário Daniel Alves, do Alma Festival. A última edição, em 15 e 16 de julho, reuniu 40 000 pessoas em dois dias no Riocentro para assistir à parte do time do trap em ação — entre eles L7nnon e Tz da Coronel. Outro sinal inequívoco de sucesso dessa turma, cuja maior parcela do público oscila entre 15 e 25 anos, é o fato de não só artistas do rap, mas até cantores de outros estilos se renderem a ele — caso de Ludmilla, Marina Sena e Gloria Groove — em seus álbuns mais recentes. No rol dos que embalaram no trap, gravando músicas, estão ainda o craque Gabigol e o humorista Whindersson Nunes.
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A adesão de artistas de variados meios tem o potencial de ampliar o alcance do dançante ritmo. “Às vezes, a galera mais velha conhece porque o filho ouve, mas não é fisgada pela letra. Aí vem uma música com temática diferente, mas com a mesma batida, e a pessoa curte”, afirma Zé Ricardo. Em sua caminhada para furar bolhas, os trappers estão ajudando a resgatar a vocação do Rio de exportar manifestações culturais e costumes para jovens de todo o país. Historicamente, ocorreu antes na cidade que foi o berço da bossa nova, a meca do samba, do baile funk e de tantas outras formas de expressão e arte. Nos últimos anos, é verdade, a maneira de falar paulistana vinha abalando a hegemonia do linguajar carioca pelo território nacional. Gírias que se disseminaram, como “treta” e “rolê”, até mexeram, quem diria, com o sólido orgulho do carioca. Agora, o vocabulário daqui volta a estar por toda parte. Como os próprios crias do trap costumam dizer: já é!
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